sexta-feira, 25 de julho de 2008

TRANSCRIÇÃO DE ARTIGO


Para reflexão......


Com os dois olhos na lei

Marcelo Semer

Os juízes estão certos em se sentirem atingidos em sua independência
quando um ministro de tribunal superior representa um magistrado em
razão de decisão judicial que prolata, por mais errada que lhe possa
parecer. A tutela sobre a jurisdição é uma afronta à independência e,
por conseqüência, à democracia. Mas o mesmo raciocínio também vale
para o ministro, pois de sua decisão, também jurisdicional, pululam
ataques desproporcionais e ameaças ainda maiores - há quem alardeie,
embora sem qualquer embasamento, um possível impeachment.

Mas é preciso perceber que há outras questões que estão em jogo que
são tão importantes quanto a independência do juiz, por essenciais à
construção da democracia. Trata-se do respeito aos fundamentos do
Estado de Direito e aos princípios universais de proteção aos direitos
humanos que herdamos desde a época do Iluminismo.

Desatento a estes, o país caminha a largos passos para um Estado
policial, no qual garantias individuais vêm sendo gradativamente
suprimidas ou flexibilizadas. A banalização da escuta telefônica
demonstra a constante vulnerabilidade da privacidade, típica de um
estado de total controle. A vulgarização da prisão temporária, que de
extrema exceção está se tornando regra, resume o paradigma de
Guantanamo, e nos aproxima de uma situação kafkiana em que teremos
entre nós mais presos sem processos do que processados sem prisão. O
espetáculo dos cumprimentos de mandados de prisão celebra o retorno às
decapitações em praça pública, em que o processo penal se transforma
apenas em um símbolo de poder e intimidação.

Muito desse novo patamar de repressão judicialmente autorizada se
baseia em aparentes bons propósitos, como o de estabelecer, por vias
transversas, uma isonomia do castigo: se antes só pretos, pobres e
prostitutas freqüentavam as varas criminais e os cárceres, agora
também banqueiros, empresários e políticos podem ser mandados às
celas. A desproporção entre a revolta por uma prisão ou outra só
comprova mesmo a desigualdade que nos cerca há séculos. Mas não nos
enganemos. Os pobres nada ganharão com este aparente, e só aparente,
equilíbrio punitivo. O aumento gradativo dos níveis de punição e o
esgarçamento das garantias mais tradicionais seguramente irão recair,
como sempre aconteceu, com mais intensidade entre os mais vulneráveis,
menos expostos às câmeras e às manchetes.

Com fundo messiânico, essa imaginária luta do bem contra o mal
tangencia um novo macarthismo, que já vem ganhando corpo com o hábito
difundido de divulgação de listas negras para todos os gostos,
desafetos, investigados, suspeitos, processados etc.

Nesse percurso, entre prisões antecipadas e escutas de conversas
privadas que todos ouvimos nos noticiários da hora do jantar, vários
princípios vão ficando pelo caminho. Direito de defesa e presunção de
inocência já não parecem palavras dignas de serem ditas por gente de
bem.

Em entrevista recente (Folha de S. Paulo, 15/07), o magistrado Fausto
de Sanctis, vítima da ameaça que comprime a independência e credor da
solidariedade de classe, justifica-se, afirmando ser papel do juiz
decidir com um olho na lei, outro na realidade.

Não se duvida da legitimidade do que hoje se denomina ativismo
judiciário, especialmente para obrigar os demais poderes ao
cumprimento dos direitos fundamentais. Muitos juízes estão dando vida
a princípios constitucionais, que não são meros enunciados vazios, e
isto é uma notícia salutar.

Mas no âmbito do direito e do processo penal, o pilar da democracia, o
divisor de águas entre arbítrio e realização da justiça, a razão
última da tutela judicial sobre os atos do Poder é justamente o
princípio da legalidade.

Para poder cumprir a missão constitucional de todo o magistrado, que é
o de ser o garantidor dos direitos fundamentais, no âmbito criminal,
não se pode tirar nem um só olho da lei. Nem mesmo piscar para ela. A
lei é o espaço de defesa do cidadão em face do arbítrio, o limite do
poder constituído.

É para resguardar o princípio da legalidade e todos os demais direitos
fundamentais que dele são decorrentes e que com ele se articulam que a
missão dos juízes não pode ser tutelada pelos demais poderes.

É para servir de anteparo às arbitrariedades que os juízes são
independentes, não para reproduzi-las.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo, ex-presidente da
Associação Juízes para a Democracia
COMENTÁRIO:Excelente e judicioso Artigo, oportuníssimo para a presente conjuntura, pois é notório o desentendimento no âmbito do Poder Judiciário e o abuso de autoridade por parte da Polícia Federal que, olvidando a lei e ultrajando com humilhações desnecessárias os direitos individuais, vem ferindo arrogante e impunemente o direito de cidadania. Que corruptos, vigaristas e qualquer tipo de marginal sejam punidos com rigor e máxima severidade, porém, com pleno cumprimento e observância dos princípios legais, pois somente a lei e apenas a lei é o escudo e a segurança de todos. Minha saudação ao Autor do Artigo!
Cel Márcio